Elas reconheceram - me.
As mãos do milagre que se viram juntas há 20 anos estavam com saudades. Os
toques se diziam muito naquela época. Demorei um pouco para que os olhos
pudessem mirar retinas que um dia foram tão familiares – olhos de Lince. Os
dois disfarçados de tempo, encobertos pelas marcas do destino e sangrando uma
vida de amores, mas também de desencantos. Sumimo-nos juntos no passado do
adeus e nos perdemos. Meu coração não entendeu a precocidade de uma morte em
vida. Então, trancafiei-me no calabouço da indiferença, com paredes
transparentes para ver o sofrimento de quem me queria por perto. As lágrimas
acabaram ficando cada vez mais raras em frente ao meu aposento. A frieza da
solidão foi minha única companheira. Até que um dia vi o filho de alguém ser
abraçado pela filha de um outro alguém na tenra idade. Tamanha ternura inocente
me emocionou e fez a primeira rachadura no meu Forte, porque em tempos imemoriais nos lembraremos melancolicamente
de uma época em que sentir um calor fraternal cingindo ao peito, aquele que
marca a roupa, era fundamental, quase uma necessidade primária. E nossos
abraços eram tão especiais, querida, debaixo daquela lua única, nas extintas
palafitas de Plataforma. Difícil não sentir saudades. Minha caixa das lamentações
nunca mais seria a mesma quando vi um casal de sessentões namorando no meio da
rua em um dia de chuva, os faróis desligados, as luminárias a meia luz, os grilos
como senhores do silêncio, a música da Adele ao longe e a lua dos enamorados
eternos para amadrinhar o instante. A fissura no meu Forte se fez maior e expos a fragilidade do luto. Um grande pedaço
daquele calabouço que era na verdade parte da minha armadura diária se
despedaçava ao chão, quando pude vislumbrar mais uma vez o meu renegado amor de
outrora. Caminhei com muita dificuldade em direção a ela, pés gelados, membros
atrofiados, coração revivendo o prazer de bater mais acelerado e haja sangue.
Sangrei por sentir o peso dos anos naquele exílio ensimesmado de mim mesmo, pelo
aperto irreparável das correntes, pelas dores solitárias dos dias sem amor e
sem poesia, dores que são tão minhas que talvez nunca mais as esqueça. E assim
fui passo após passo em direção ao que faria preencher as lacunas de páginas
não escritas, daquele choro não consolado, daquele sorriso não curtido, daquela
conquista não comemorada. De tanto
sangrar, pedaços das minhas vestes foram se soltando pelo caminho. Eu estava
vestido de escudo e espinhos. Agora, não mais. E então éramos nós dois rejuvenescidos.
Literalmente. De mãos dadas. E sem saber o que fazer, perguntei:
– Hei, por onde você andava?
Tocando no
meu peito, ela respondeu:
- Jamais fui a
parte alguma.