sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Maslowa


Conheci uma professora extremamente gentil e disciplinada, eu diria. Ela é aposentada em exercício, se é que isso existe! 30 anos de serviço público e 40 de militância política. Ajudou a fundar um partido na Bahia. Poucas vezes vi alguém separar essas duas dimensões de forma tão rigorosa em sala de aula. Sou aluno dela. Quase tudo que sei sobre a vida dela cabe em três linhas. Comprometida com a profissão como jamais vi.  Não saberia poetizar a vida dela. Não a conheço e não o farei. Ah, detalhe, ela é paciente oncológica em estado terminal com chances de mais 1 ano e meio de vida.
Impactado por tanta disposição para ensinar, para partilhar conhecimento, arrisquei saber um pouco mais sobre ela. Alguém que se distingue tanto do contexto do cenário atual, esse oceano de indigência arrogante que sorri de cima, sabe?! Tipo, aquela empáfia que constrange... Soube que ela é simplesmente a ex-orientadora da maior autoridade de um determinado ramo das ciências sociais em território baiano. Puxa vida! Ela está aqui na minha frente, corrigindo-me nos meus infinitos equívocos de natureza teórica e metodológica, nos meus rabiscos arrastados no âmbito das ciências. Sinto-me tão orgulhoso de ouvi-la nas manhãs de quarta e sexta na Universidade. Na aula dela, eu até esqueço que o celular foi inventado. Desligo a aparelho no receio de perder qualquer detalhe da exposição do conteúdo, do silêncio retórico, dos questionamentos sempre assertivos.
Não sei dizer mais nada sobre essa experiência. Lamento pelo momento tão difícil por que passa a produção de ciência neste país.
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Ela é paciente oncológica em estado terminal com chances de mais 1 ano e meio de vida. Faz quimioterapia na sexta, tem reações colaterais terríveis, piora no sábado e luta de domingo a terça para só então, na quarta pela manhã, reunir forças para ministrar aulas, puxar orelhas, orientar, reorientar, indicar bibliografias, refazendo-se digna, forte, altiva naquela universidade, no chão da sala, local onde ela destila talento como poucos. Na quinta-feira parece que a recuperação se faz plena e na sexta pela manhã, ela é o Sol. 4 horas ininterruptas de convivência, inspiração e aprendizado. É de admirar o entusiasmo, quando se sabe que, à tarde da mesma sexta-feira, a mesa da quimioterapia a espera para o ciclo recomeçar! Eu nem sei porque estou escrevendo isso. Avessa a redes sociais, jamais lerá meu depoimento. Um semestre inteiro, intenso, emocionado... Eu nunca chorei tanto por alguém que não conheço. Que loucura! Eu nunca fiz aquela linda caminhada do Senhor do Bonfim por alguém que não conheço. Dá o horário, peço licença, saio da sala em disparada, rumo direto ao estacionamento, adentro ao veículo para ninguém me ver decomposto.  
Intuo que tenha deixado o conforto da aposentadoria somente para terminar seus dias dando aulas! Meu Deus!! Quando reflito sobre a educação brasileira, penso nela como a andorinha que leva água no bico para apagar aquele incêndio impossível, das histórias que meus pais me contaram quando criança. A contribuição dela é um convite à urgência da educação. É muita gentileza dela continuar a tratar a educação com tanto zelo e como expressão viva da própria existência. Uma profissional de compromisso pleno e rigoroso com a qualidade do processo de ensino e aprendizagem. Vibrante, entusiasmada... Nunca vi igual! Uma força incrível. Gigante! Desejo-lhe a maior das riquezas, Professora: - Mais tempo... mais qualidade de tempo. Desde já, por todos os cantos e todas as pessoas que tenho apreço, falo de ti. Não falo do câncer. Ele será sempre menor do que a vida. A SUA!!
Meu carinho e admiração eternos!