terça-feira, 20 de março de 2012

OS REIS DO DISCURSO

E disse Deus: “Haja luz; e houve luz”.
Bíblia Sagrada
O ser humano é obstinado pelas origens. Queremos saber o início de tudo. Dizem que se esclarecermos o passado, poderemos entender o presente e saberemos direcionar melhor o futuro. Acredito ser um grande equívoco pensar desta maneira. Somos um bando de curiosos tentando dar significado à existência e mais nada. Contudo, o que realmente me interessa é o discurso, mais precisamente as origens e os desdobramentos de alguns discursos. A ideia é mais revolucionária do que alguns adventos de magnitudes inquestionáveis da história da humanidade. Por exemplo, você conhece ou conheceu componente mais revolucionário do que o discurso de um único e poderoso Deus em detrimento do charme e da mística que cercavam os residentes do imponente Olimpo? O mundo nunca mais seria o mesmo desde então. Para a história dos homens, este conceito foi infinitamente mais marcante e transformador do que o imperador Bizantino ter sabiamente se cristianizado na iminência da morte.  Foi estarrecedor ver o que o discurso ariano da supremacia racial fez da Europa. O que dizer então dos discursos que permearam as relações entre europeus incendiários de bruxas e carnavalescos indígenas pós-idade média. Muito sangue, companheiros, muito sangue.
A filósofa e poeta Viviane Mosé quando questionada pelo excêntrico Antônio Abujamra sobre quem, em sua opinião, teria feito maior mal à humanidade dentre os bancos, a religião e a filosofia, a escritora hesitou por instantes e depois disparou: “- O discurso socrático-platônico-aristotélico”. Um discurso que instaurou definitivamente uma espécie de sujeito para toda ação expressa pelo verbo. Este conceito fez toda diferença, meus caros, pois a partir de então todos nós passamos a ter um referencial fixo. Graças a este discurso a ideia de um Deus que “tudo pode, tudo vê e tudo sabe” foi possível, e todas as outras relações ou construções sociais foram sendo configuradas nos moldes de uma caracterização fria e estática das coisas, desde a oratória cotidiana a modelos econômicos complexos. Perceba que nossa visão de mundo é definida por dicotomias e perspectivas maniqueístas de existência como bem e mau, certo e errado, dentre outras. O equívoco reside exatamente nesta ideia, já que em verdade somos múltiplos e sabe-se que um ponto de vista tem possibilidades infinitas de análise. Os clássicos que me perdoem, mas fizeram um mal irreparável a uma humanidade plural e multifacetada, cansada de ser reduzida a dicotomias desde a origem. A história está repleta de exemplos que ilustram o referido erro. A luta milenar do bem contra o mal, como se cada um não tivesse em si próprios as mais extremas manifestações de Deus e do Diabo e outras tantas entidades inominadas. Pode-se citar como exemplo próximo a invenção da imagem do Nordeste, construída pura e simplesmente em oposição sistemática ao sul do país. Essa perspectiva é muito simplória e reducionista. O Sudeste em sendo um sujeito referencial e o Nordeste a sua negação. Uma equivalência de forças que acaba descaracterizando a definição ou indefinição dessas duas regiões.
Karl Marx não percebeu, mas quando lançou a dinamite de uma luta de classes como a mola propulsora da história dos homens e estabeleceu o socialismo como um antídoto possível, se esqueceu de que antes de potências tão grandes como o patronato e o proletariado, há o sujeito individual, com seu livre arbítrio e com desejos individuais que sublimam o coletivo, um vírus mortal que dinamitou o estabelecimento de um conceito tão bonito como foi o socialismo ideal. 
A influência do discurso dos clássicos foi tamanha que a obra de Platão “A República” já trazia uma ideia de “Ordem e Progresso” presente em toda nação capitalista e emergente, mas ao deixar os poetas, de forma intencional, à margem desta sociedade inventada, ficou claro o quanto o elemento da subversão deve ser aprisionado quando se quer manter o “Status quo” de domínio dos privilegiados sobre as massas.  Daí se pode ter uma noção de como a cultura da mordaça se disseminou em países pseudodemocráticos do paraíso ocidental. A armadilha reside no discurso.
No caso brasileiro, quando se analisa a origem e formação de uma favela no alto dos morros nas grandes cidades, por exemplo, a primeira explicação que vem à mente é a favela como fruto de um problema social de ocupação indevida e irregular do solo, situação que favorece uma corrente interminável de dramas narrados como filmes reprisados de extrema violência. Entretanto, afirmo que antes de ser um problema social, a formação dos morros, da maneira como está disposta hoje, é a culminância de um enredo triste que se originou de uma ideia, de um discurso extremamente estereotipado das corretes filosóficas do século XIX. O Darwinismo social foi um conceito que - tomando como base a vertente biológica da seleção natural em que os seres mais fortes se adaptam às adversidades da natureza, enquanto os mais fracos são eliminados deste processo – pressupunha um Brasil sempre em posição de subalternidade, seu povo sempre seria subjulgado e que, acima de tudo, trazia no sangue o DNA da fragilidade e da incapacidade de se tornar uma nação forte, desenvolvida e realmente independente, sobretudo porque havia irremediavelmente em sua composição étnica o braço da negritude. Os governantes, contaminados por este discurso, adotaram algumas medidas para “melhorar” a imagem do país lá fora, dentre as quais duas se destacam: A forte propaganda pró-imigração, a fim de tentar “branquear” o país com alemães e italianos; a outra medida é de caráter topográfico e fez toda a diferença. No lugar de inúmeros cortiços que ocupavam os grandes centros urbanos, e que eram compostos essencialmente por miseráveis, o governo passou a construir grandíssimas e desnecessárias praças públicas, monumentos suntuosos e propriedades privadas para aristocracia, com o objetivo de expulsar as classes menos favorecidas para longe daquilo que viria a ser, anos depois, a parte nobre da cidade. Vide o Campo Grande em Salvador. Essa leva de invisíveis sociais, sem teto e sem perspectiva, arrancada deliberadamente das suas rotinas, passou a se deslocar para os confins das grandes cidades, passou a compor os atuais morros, as margens dos centros de poder e alijada do direito à cidadania plena, onde ficaria, por longas décadas, desassistida das obrigações do Estado.
Por todas estas razões discursivas, que apontam o preconceito, a discriminação, a ordem, o progresso, o bem, o mau, o certo e o errado como ideias que servem a um propósito de controle e, por outro lado, altamente revolucionário, o século XX foi o do desmanche e o XXI está sendo o século do “não-discurso” ou das várias vozes que compõem conceitos sem cara definida, com perfis em blogs, redes sociais e os cambal. Perdemos todos os paradigmas e o sangue que iremos derramar de agora em diante partirá de uma ideia que ainda não conseguimos rastrear, e talvez nem consigamos.  Tenho medo dos efeitos de um discurso destrutivo que ganha força. Basta lembrar que neste momento algumas pessoas, em alguma parte do mundo, estão munindo seu próprio corpo com bombas para um martírio suicida, motivadas por um discurso qualquer de salvação e vingança. Há de se tomar cuidado, pois ele chega trajado com as vestes da inocência.
E disse o homem: Haja a palavra: e então surgiu a palavra,
Houve confusão - ninguém mais se entendeu.
Adriano Marques

2 comentários:

  1. Prof lázaro carvalho
    texto show man..rs diversas reflexões... os podres poderes entrelaçados nos diversos sentidos que as palavras asssume e a felicidade da compreensão delas..rs depois conversaremos ao som de lenine e zeca baleiro sobre este texto!!!
    Um forte abraço

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